terça-feira, 6 de julho de 2010

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade, para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Antemanhã

Que tal a Mensagem? Proponho-vos Antemanhã, na grafia original:

O mostrengo que está no fim do mar
Veio das trevas a procurar
A madrugada do novo dia,
Do novo dia sem acabar;
E disse, «Quem é que dorme a lembrar
Que desvendou o Segundo Mundo,
Nem o Terceiro quere desvendar?»

E o som na treva de elle rodar
Faz mau o somno, triste o sonhar.
Rodou e foi-se o mostrengo servo
Que seu senhor veio aqui buscar,
Que veio aqui seu senhor chamar –
Chamar Aquelle que está dormindo
E foi outrora Senhor do Mar.

Fernando Pessoa

terça-feira, 18 de maio de 2010

Mais um conto oriental

 Numa aldeia da Índia, vivia um homem de grande santidade. Aos aldeões parecia-lhe uma pessoa notável e, ao mesmo tempo, extravagante. Na verdade, aquele homem chamava-lhes a atenção tanto como os desconcertava. O caso é que pediram que predicasse para eles. O homem, que estava sempre disponível para os outros, acedeu sem hesitar. No dia marcado para a prédica, teve a intuição de que a atitude deles não era sincera e achou que mereciam uma lição. Chegou o momento da palestra e os aldeões, divertidos, dispuseram-se a ouvir o homem santo, convictos de que iam passar um bom bocado à sua custa. O mestre apresentou-se perante eles. Após uma breve pausa de silêncio, perguntou:
  - Amigos, sabeis do que vos vou falar?
  - Não - responderam.
  -Nesse caso - disse - não vou dizer-vos nada. São tão ignorantes que nada poderia dizer que valesse a pena.(...)
  Os assistentes, desorientados, foram para casa. No dia seguinte reuniram-se e decidiram reclamar as palavras do santo. O homem santo não hesitou em se apresentar perante eles, e perguntou-lhes:
  - Sabem do que vos vou falar?
  - Sim, sabemos - responderam os aldeões.
  - Sendo assim - disse o santo -, não tenho nada para vos ensinar porque já sabem. Tenham uma boa noite, amigos.
  Os aldeões sentiram-se vilipendiados, frustrados e indignados. Mas de forma alguma desistiriam, e voltaram a convocar o homem santo. Este olhou para os assistentes em silêncio e muito calmo. Pouco depois, perguntou:
  - Sabem, amigos, de que vos vou falar?
  Não querendo ser apanhados novamente, os aldeões já tinham combinado a resposta:
  - Uns sabemos e outros não.
  E o homem santo disse:
  - Nesse caso, aqueles que sabem que transmitam o seu conhecimento àqueles que não sabem.


domingo, 16 de maio de 2010

Dizem que em cada Coisa uma Coisa Oculta Mora

Dizem que em cada Coisa uma Coisa Oculta Mora  

Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.
Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,
Que mora nela.

Mas eu, com consciência e sensações e pensamento,
Serei como uma coisa?
Que há a mais ou a menos em mim?
Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo -
Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso.
Que coisa a mais ou a menos é que eu sou?

O vento sopra sem saber.
A planta vive sem saber.
Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo.
Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei?
Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando,
Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim.
Então quem sou eu?

Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer?
Ou a minha alma é a consciência que a força universal
Tem do meu corpo por dentro, ser diferente dos outros?
No meio de tudo onde estou eu?

Morto o meu corpo,
Desfeito o meu cérebro,
Em coisa abstracta, impessoal, sem forma,
Já não sente o eu que eu tenho,
Já não pensa com o meu cérebro os pensamentos que eu sinto meus,
Já não move pela minha vontade as minhas mãos que eu movo.

Cessarei assim? Não sei.
Se tiver de cessar assim, ter pena de assim cessar,
Não me tomará imortal.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

domingo, 2 de maio de 2010

De profundis

De profundis

Encontro, algures na minha natureza, alguma coisa que me diz que não há nada no mundo que seja desprovido de sentido, e muito menos o sofrimento. Essa qualquer coisa, escondida no mais fundo de mim, como um tesouro num campo, é a humildade. É a última coisa que me resta, e a melhor (…). Ela veio-me de dentro de mim mesmo e sei que veio no bom momento. Não teria podido vir mais cedo nem mais tarde. Se alguém me tivesse falado dela, tê-la-ia rejeitado. Se ma tivessem oferecido, tê-la-ia rejeitado (…). É a única coisa que contém os elementos da vida, de uma vida nova (…). Entre todas as coisas ela é a mais estranha (…). É somente quando perdemos todas as coisas que sabemos que a possuímos.

(Oscar Wilde, in “De Profundis”)

domingo, 25 de abril de 2010

Sonho causado pelo voo de uma abelha um segundo antes de acordar




Sonho causado pelo voo de uma abelha um segundo antes de acordar


Salvador Dalí

Esta velha angústia

Esta velha angústia,

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.


Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.


Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...


Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.


Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?


Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Consciência dos sonhos

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Texto que me pediram para publicar:
-------------------------------------------------
Há dois tipos de sonhos, diria eu. Não me refiro a sonhos = aspirações. Refiro-me a sonhos sonhos, daqueles literais, e a distinção de que falo não se refere a pesadelos. Refere-se a consciência.

Eu distinguiria entre sonhos regulares e sonhos lúcidos, simplesmente. Sonhos regulares são aqueles que nós temos, todas as noites, e que, na maior parte das vezes, não nos lembramos. E sonhos lúcidos? Bem sei que o termo não é muito fausto, mas é o que se utiliza para designar sonhos nos quais o sonhador se apercebe que está a sonhar e no qual tem a sua disposição o controlo dos cinco sentidos e a consciência do que o rodeia... É um fenómeno que está cientificamente comprovado, embora a prova que vos irei propor seja de outra natureza, mais prática.
O que nos interessa isto?, perguntais. E perguntais bem. Não gostaríeis de poder fazer tudo o que a vossa mente pudesse conceber? É possível, nos sonhos, mas é possível. Tudo, desde voar, respirar debaixo de água, transformarmo-nos em animais, o que nos ocorrer! Só os sonhos podem providenciar experiências tão únicas!
E de que adianta fazê-lo, se não é real?, podeis ainda questionar. Acontece que, para a mente, é como se fosse real. Há experiências científicas que comprovam esta ligação. Por isso, quando voardes pelo céu, num sonho lúcido, será como se o estivésseis a fazer na realidade. E voar é só uma das infinitas possibilidades que a percepção da verdadeira natureza dos sonhos nos traz, e cabe-nos a nós aproveitá-la.

Aos mais cépticos resta-me citar Duarte Pacheco Pereira: «como quer que a experiência é madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade», e acrescentar, se duvidais, experimentai por vós mesmos. Sabereis radicalmente a verdade.

Como poderemos experimentar por nós mesmos, se nem sabemos como se causam ou induzem? A Internet tem abundantes recursos nesta matéria – em Português também, e há comunidades dispostas a ajudar os iniciantes no seu caminho para os sonhos lúcidos.

sábado, 17 de abril de 2010

por vezes, excurso pela minha fé

por vezes, excurso pela minha fé

por vezes, excurso pela
minha fé, deus obedece-me
     com dedicação, quando
          alimento os parasitas
       dos meus sonhos para
            sabotar a realidade

          acorro aos pássaros
          desligados ao vento

             não caio, entre os
pássaros bichos irregulares


valter hugo mãe

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Apesar das ruínas e da morte

Apesar das ruínas e da morte

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 13 de abril de 2010

Se não puderes ser um pinheiro

Se não puderes ser um pinheiro

Se não puderes ser um pinheiro no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale, mas sê
O melhor arbusto à margem do regato
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso…
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

(Pablo Neruda)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sobre o ocultismo

Fernando Pessoa explica a Adolfo Casais Monteiro a sua visão sobre o ocultismo, depois de este lha ter perguntado, a respeito da introdução ao poema Eros e Psqiue:
Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
 Fernando Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Eros e Psique

Eros e Psique

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Fernando Pessoa

segunda-feira, 5 de abril de 2010

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma  regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

                      Eugénio de Andrade

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Na terra dos Sonhos

Encontrei esta história que me dei ao trabalho de traduzir:

Na terra dos Sonhos

"O nosso mestre costumava fazer uma sesta todas as tardes", relatou um discípulo de Soyen Shaku. "Nós, crianças, perguntámos-lhe por que o fazia e ele disse-nos: Eu vou à terra dos Sonhos para conhecer os velhos sábios tal como fizera Confúcio." Quando Confúcio dormia, ele sonhava com velhos sábios e depois falava deles aos seus seguidores.
"Certo dia, quando o calor era muito, alguns de nós decidiram dormir uma sesta. O nosso mestre ralhou-nos. Nós fomos à terra dos Sonhos conhecer os velhos sábios tal como fez Confúcio, explicámos. Qual foi a mensagem desses sábios?, quis saber o mestre. Um de nós respondeu: Fomos à terra dos Sonhos e perguntámos-lhes se o nosso mestre vinha aqui todas as tardes, mas eles disseram que nunca o tinham visto."

quarta-feira, 31 de março de 2010

O Andaime

O Andaime
 
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.

A ‘sp’rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha ‘s’prança,
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças —
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

sábado, 27 de março de 2010

Desafio - Onde são as ilhas


Música, levai-me:

Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?
Eugénio de Andrade

Desafio os leitores a responder a Eugénio de Andrade: Onde estão as barcas? Onde são as ilhas?

quinta-feira, 25 de março de 2010

O Passado é o Presente na Lembrança

O Passado é o Presente na Lembrança
Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.

Ricardo Reis, in "Odes"

terça-feira, 23 de março de 2010

Quem Sonha Mais

Quem Sonha Mais? 

Quem sonha mais, vais-me dizer —
Aquele que vê o mundo acertado
Ou o que em sonhos se foi perder?

O que é verdadeiro? O que mais será —
A mentira que há na realidade
Ou a mentira que em sonhos está?

Quem está da verdade mais distanciado —
Aquele que em sombra vê a verdade
Ou o que vê o sonho iluminado?

A pessoa que é um bom conviva, ou esta?
A que se sente um estranho na festa?

Alexander Search, in "Poesia"

domingo, 21 de março de 2010

Verdade? É relativo

Um conto oriental sobre a relatividade da verdade:

Certo dia, o rei preocupado com a falta de verdade dos seus cidadão, mandou chamar um conhecido ermita que vivia na floresta e perguntou-lhe o que podia fazer para que as pessoas fossem melhores.
- Posso dizer-lhe, majestade, que as leis não bastam para tornar as pessoas melhores. Os Homens têm de cultivar certas atitudes baseadas na compaixão e na claridade da mente, para alcançar a verdade de ordem superior, que nada tem a ver com a verdade comum. - respondeu o ermita.
Desconcertado, o rei reagiu:
- Do que não há dúvida é que posso conseguir com que digam a verdade, posso obrigá-las a isso.
O sábio sorriu timidamente.
Dias depois, o monarca mandou montar um cadafalso na ponte que dava acesso à cidade e um esquadrão revistava e interrogava todos os que quisessem passar. «Se disser a verdade entrará; se mentir, será conduzido ao cadafalso e enforcado», eram as ordens do rei.
Ao raiar do dia, e após uma noite de meditação, o ermita dirigiu-se  à cidade. Avançou para a ponte quando o capitão da guarda se interpôs no seu caminho para o interrogar:
- Onde vais?
- Vou a caminho da forca, para que me possam enforcar - respondeu o sábio serenamente.
- Não me parece - duvidou o capitão
- Então, capitão, se menti, enforque-me.
- Mas se te enforcamos por teres mentido - replicou o capitão -, teremos tomado certo o que disseste e, nesse caso, não te teremos enforcado por mentir, mas por dizer a verdade.
- É isso mesmo - afirmou o sábio. - Agora sabe o que é a verdade... a sua verdade! Informe sua majestade sobre isto..
Deu meia volta e os seus passos dirigiram-se à frondosa floresta onde vivia.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Talvez...

Labirinto ou não foi nada
Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.


David Mourão Ferreira
À Guitarra e à Viola

quarta-feira, 17 de março de 2010

Aviso de mobilização

Aviso de mobilização

Passaram pelo meu nome e eu era um número
- menos que a folha seca de um herbário.
Colheram-no com mãos de zelo e gelo;
escreveram-no, sem mágoa, num postal.


Convite a que morresse. .. mas por quê?
Convite a que matasse. .. mas por quem?
Ó vago amanuense, ó apressado
e súbito verdugo, que te ocultas
numa rubrica rápida, ilegível,
que dirás tu do meu e de outros nomes,
que dirás tu de mim e de outros mais,
no Dia do Juízo já tão próximo
- que dirás tu de nós, se nem tremeu,
na rápida rubrica, a tua mão?

Bem sei que a tua mão só executa;
mas para além do ombro a ti pertences.
Bem puderas chorar, ter hesitado. . .
- A mancha de uma lágrima bastara
para dar um sentido a esta morte
a que a tua indiferença nos convoca!



David Mourão Ferreira
Tempestade de Verão

terça-feira, 16 de março de 2010

Desenhar uma flor

Desenhar uma flor

Pede-se a uma criança: Desenha uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas.

A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

Almada Negreiros, in “O Regresso ou o Homem Sentado – III parte”

segunda-feira, 15 de março de 2010

E por vezes

Ontem não coloquei nada novo propositadamente, para deixar amadurecer este último poema, no qual considero muito importante reflectir. 

E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro da noite não os meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão Ferreira

sábado, 13 de março de 2010

Gozo Sonhado é Gozo, ainda que em Sonho

Gozo Sonhado é Gozo, ainda que em Sonho 
Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Nós o que nos supomos nos fazemos,
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois, meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me consumo.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso,
O Fado cumpre-se. Porém eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que de meu me é dado.

Ricardo Reis, in "Odes"

O que este poema nos diz é verdade, e extremamente importante.
Recentemente, esse potencial do sonho (e aqui sonho refiro-me àquilo que toda a gente vivencia de noite, na fase REM) tem vindo a ser usado como terapêutica e como forma de melhorar o quotidiano. Falo de perder peso fazendo exercício nos sonhos, conseguir deixar de fumar, ou até melhorar a coordenação dos membros.
Estas realizações baseiam-se na descoberta fruto de investigações (mais ou menos recentes, mas actuais) em que se notou que as zonas do cérebro em actividade correspondiam àquilo que o sujeito imaginava fazer. Isso também é notório em sujeitos que estão sob aparente coma (ligação em inglês).

Desnoções e algibeiras

desnoções & algibeiras
para ser grilo
há que ter algibeiras
onde também caibam silêncios.
ser sorrateiro
espreitando entre dois fios de relva.
saber fazer uma teia invisível
onde o infinito se armadilhe.
encarar o universo com
demasiada intimidade
– a modos que quintal.
saber que:
as estrelas encarecem
de carinho
e brilham para mais desanonimato;
sonetar com roncos de garganta
mas desminar rebentamentos no coração.
para ser grilo
há que ter desnoções.
viver que:
há só uma distanciaçãozinha
entre apalmilhar um quintal
e acomodar estrelas num abraço.

Ondjaki
(de  http://www.kazukuta.com/ondjaki/ha_prendisajens.html)

quinta-feira, 11 de março de 2010

As palavras

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 10 de março de 2010

Sê paciente; espera

Ontem falhei a minha mensagem habitual.
Para os que notaram a minha falta, dedico-lhes este poema:
Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 8 de março de 2010

Entre o Sono e Sonho


Entre o Sono e Sonho
 
Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

domingo, 7 de março de 2010

Sonho noutro sonho

Um poema  de Edgar Allan Poe, Dream Within a Dream (original aqui), declamado por Isabel Sá Lopes. A tradução é de Margarida Vale de Gato (em "Edgar Allan Poe - Obra Poética Completa"), a melhor que encontrei em Português. Obrigado ao comentador anónimo que me indicou a fonte da tradução.



 Sonho noutro sonho


Aceita em tua fronte este meu beijo!
E, neste instante em que te deixo ,
Deixa que ao menos te confesse
Que não é ilusão , se te parece
Que minha vida em sonhos se entretece ;
Mas, se acaso a esperança fugidia
Se some numa noite ou num só dia ,
Numa visão...ou não...será por isso
Menos certo o seu sumiço ?
Tudo o que é visto , tudo o que é suposto
É só um sonho noutro sonho posto

Eis-me aqui entre o bramido
Do mar que junto à costa é sacudido
E guardo na mão fechada
Uns grãos de areia dourada ...
Tão escassos !... mas num segundo
Dos dedos vão para o fundo ,
E eu choro , ah , desabalado !
Oh , Céus ! Porque os não aperto
Com um laço mais esperto ?
Oh , Céus ! Por que não posso eu salvar
Um só...das garras desse ímpio mar?
Tudo o que é visto,tudo o que é suposto
É só um sonho noutro sonho posto ?

 


Fonte: blogue Escutando a Isabel

sábado, 6 de março de 2010

Ainda sabemos cantar

Dispensa explicações ou introdução. O poema diz tudo.

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 5 de março de 2010

É importante criar desobjectos

tinha aprendido que era muito importante criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar o cinzento. não munido de nenhum artefacto alegre, inventei um espanador de tristezas.
era de difícil manejo – mas funcionava.

Estas palavras são de Ondjaki, um emergente escritor angolano, que tem uma relação diferente com as palavras, referindo-se à sua recente obra de poesia, materiais para confecção de um espanador de tristezas.
Cito dois poemas dele, para mostrar o potencial positivo das coisas/palavras más:
“o início”

segui a lesma. a baba dela parecia um rio de infância perdido no tempo. escorreguei no tempo.
nesse rio havia um jacaré. a fileira enorme de dentes lembrou-me uma pequena aldeia cheia de cubatas [talvez a aldeia de ynari];
adormeci na aldeia.
ouvi um barulho – era a lesma a sorrir.
o sorriso fez-me lembrar um velho muito velho que escrevia poemas. os poemas eram restos de lixo que ele coleccionava no quarto ou no coração das mãos.
abracei o velho. quase que eu esborrachava a lesma.
(retirado de http://www.kazukuta.com/ondjaki/espanador_de_tristezas.html)

O Obsceno, A Obscena
era que: obsceno, ou obscena, eram palavras bonitas.
adoro apreciar um corpo pela obscenidade - fica bonito
até excitar a comoção.
já vi uma boca obscena que era um poema vivo.
uma mão obscena já me desconcentrou a existência.
línguas obscenas trazem paz ao caos de um orgasmo.
mais até:
uma vez, uma nuvem obscena fez o arco-íris corar.
o céu ficou lindo.
(retirado de http://sosleitoresmurca.blogspot.com/2010/02/receita-para-que-nao-murchem-nem-se.html)
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Sugestão de actividade


quinta-feira, 4 de março de 2010

Terror de te amar

A propósito de:
É tão difícil amar amando,
É difícil amar acreditando
Que amar na sua condição de amor
Não trará sofrimento ou dor
(excerto de um poema de Luís Severino, que pode encontrar aqui)
um poema de Sophia de Mello Breyner:

Terror de te amar
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Céptico por sistema

Céptico por sistema

Gabava-se do seu cepticismo. (...) Achava-se o mais experiente e sagaz investigador espiritual, uma velha raposa a quem nada nem ninguém conseguia convencer. Mas um dia, de repente, apercebeu-se de quão vazio estava espiritualmente e de quanto conhecimento real lhe faltava. «Como é possível», perguntou-se, «se passei toda a minha vida a investigar?»
Desolado, soube (...) de um ioguim que habitava numa gruta nos Himalaias. Foi visitá-lo. Falou-lhe do tempo que passara a indagar e o critério que seguira. O ioguim disse-lhe:
- A dúvida ajuda-nos a prosseguir, mas onde nos pode levar a dúvida céptica e sistemática? Quero que amanhã te apresentes perante mim com um quilo de pêssegos. (...)
Assim que o Sol começou a despontar, o investigador céptico já estava junto do ioguim, incapaz de disfarçar a sua angústia e impaciência.
- Espalha os pêssegos no chão - disse o ioguim.
O investigador assim fez.
- Agora põe de lado os pêssegos podres e fica com eles.
O investigador tirou os pêssegos em mau estado e viu como o ioguim se punha a comer os bons.
- Pobre tolo! - exclamou com sarcasmo. - Tanta ênfase puseste em descobrir os pêssegos podres que deixaste de ver os bons.
O excerto transcrito descreve perfeitamente as consequências da ânsia desenfreada na busca dos defeitos. Fonte: Os Melhores Contos Espirituais do Oriente, recolhidos por Ramiro Calle, e editados em Portugal pel'A Esfera dos Livros.

terça-feira, 2 de março de 2010

O faz um poeta?

Por que é que os poetas o são?

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.



Sophia de Mello Breyner
Um poeta não se mascara, não calcula, não se abriga, mas sim revela todo o seu íntimo nas suas poesias.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Uma vez, enchi a minha mão de bruma

Sugiro que o façamos, que enchamos as nossas mãos de bruma, e aproveitemos a sua maleabilidade para tornar consistentes os nossos sonhos.


Uma vez, enchi a minha mão de bruma

Uma vez, enchi a minha mão de bruma.
     Quando a abri, a bruma era uma larva.
Voltei a fechar a mão, e então era um pássaro.
      E fechei e abri novamente a mão,
   e na sua palma encontrava-se um homem
    de rosto triste, virado para o céu.
       Mais uma vez fechei a mão,
    e quando a abri já só havia bruma.
Mas escutei uma canção de uma doçura extrema.
 

Kahlil Gibran
Areia e Espuma 

sábado, 27 de fevereiro de 2010

À guisa de introdução

Em jeito de introdução, o que se tenciona fazer com este blogue:

exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora


Mário Cesariny de Vasconcelos

Editorial

Quantos correm, a quantos falta o tempo!
Onde estão as coisas belas, onde está a sabedoria das palavras simples?

Porque a tantos falta o tempo, porque a tantos falta a sensibilidade e porque outros a desejam e procuram,
Nasceu este blogue.
Aqui, as palavras são relativas, mas nem por isso mais indignas da nossa atenção. Aqui, o segredo está no apreciar e cultivar dessa relatividade. E porque não queremos que seja segredo, aqui estamos.