terça-feira, 18 de maio de 2010

Mais um conto oriental

 Numa aldeia da Índia, vivia um homem de grande santidade. Aos aldeões parecia-lhe uma pessoa notável e, ao mesmo tempo, extravagante. Na verdade, aquele homem chamava-lhes a atenção tanto como os desconcertava. O caso é que pediram que predicasse para eles. O homem, que estava sempre disponível para os outros, acedeu sem hesitar. No dia marcado para a prédica, teve a intuição de que a atitude deles não era sincera e achou que mereciam uma lição. Chegou o momento da palestra e os aldeões, divertidos, dispuseram-se a ouvir o homem santo, convictos de que iam passar um bom bocado à sua custa. O mestre apresentou-se perante eles. Após uma breve pausa de silêncio, perguntou:
  - Amigos, sabeis do que vos vou falar?
  - Não - responderam.
  -Nesse caso - disse - não vou dizer-vos nada. São tão ignorantes que nada poderia dizer que valesse a pena.(...)
  Os assistentes, desorientados, foram para casa. No dia seguinte reuniram-se e decidiram reclamar as palavras do santo. O homem santo não hesitou em se apresentar perante eles, e perguntou-lhes:
  - Sabem do que vos vou falar?
  - Sim, sabemos - responderam os aldeões.
  - Sendo assim - disse o santo -, não tenho nada para vos ensinar porque já sabem. Tenham uma boa noite, amigos.
  Os aldeões sentiram-se vilipendiados, frustrados e indignados. Mas de forma alguma desistiriam, e voltaram a convocar o homem santo. Este olhou para os assistentes em silêncio e muito calmo. Pouco depois, perguntou:
  - Sabem, amigos, de que vos vou falar?
  Não querendo ser apanhados novamente, os aldeões já tinham combinado a resposta:
  - Uns sabemos e outros não.
  E o homem santo disse:
  - Nesse caso, aqueles que sabem que transmitam o seu conhecimento àqueles que não sabem.


domingo, 16 de maio de 2010

Dizem que em cada Coisa uma Coisa Oculta Mora

Dizem que em cada Coisa uma Coisa Oculta Mora  

Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.
Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,
Que mora nela.

Mas eu, com consciência e sensações e pensamento,
Serei como uma coisa?
Que há a mais ou a menos em mim?
Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo -
Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso.
Que coisa a mais ou a menos é que eu sou?

O vento sopra sem saber.
A planta vive sem saber.
Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo.
Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei?
Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando,
Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim.
Então quem sou eu?

Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer?
Ou a minha alma é a consciência que a força universal
Tem do meu corpo por dentro, ser diferente dos outros?
No meio de tudo onde estou eu?

Morto o meu corpo,
Desfeito o meu cérebro,
Em coisa abstracta, impessoal, sem forma,
Já não sente o eu que eu tenho,
Já não pensa com o meu cérebro os pensamentos que eu sinto meus,
Já não move pela minha vontade as minhas mãos que eu movo.

Cessarei assim? Não sei.
Se tiver de cessar assim, ter pena de assim cessar,
Não me tomará imortal.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

domingo, 2 de maio de 2010

De profundis

De profundis

Encontro, algures na minha natureza, alguma coisa que me diz que não há nada no mundo que seja desprovido de sentido, e muito menos o sofrimento. Essa qualquer coisa, escondida no mais fundo de mim, como um tesouro num campo, é a humildade. É a última coisa que me resta, e a melhor (…). Ela veio-me de dentro de mim mesmo e sei que veio no bom momento. Não teria podido vir mais cedo nem mais tarde. Se alguém me tivesse falado dela, tê-la-ia rejeitado. Se ma tivessem oferecido, tê-la-ia rejeitado (…). É a única coisa que contém os elementos da vida, de uma vida nova (…). Entre todas as coisas ela é a mais estranha (…). É somente quando perdemos todas as coisas que sabemos que a possuímos.

(Oscar Wilde, in “De Profundis”)

domingo, 25 de abril de 2010

Sonho causado pelo voo de uma abelha um segundo antes de acordar




Sonho causado pelo voo de uma abelha um segundo antes de acordar


Salvador Dalí

Esta velha angústia

Esta velha angústia,

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.


Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.


Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...


Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.


Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?


Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Consciência dos sonhos

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Texto que me pediram para publicar:
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Há dois tipos de sonhos, diria eu. Não me refiro a sonhos = aspirações. Refiro-me a sonhos sonhos, daqueles literais, e a distinção de que falo não se refere a pesadelos. Refere-se a consciência.

Eu distinguiria entre sonhos regulares e sonhos lúcidos, simplesmente. Sonhos regulares são aqueles que nós temos, todas as noites, e que, na maior parte das vezes, não nos lembramos. E sonhos lúcidos? Bem sei que o termo não é muito fausto, mas é o que se utiliza para designar sonhos nos quais o sonhador se apercebe que está a sonhar e no qual tem a sua disposição o controlo dos cinco sentidos e a consciência do que o rodeia... É um fenómeno que está cientificamente comprovado, embora a prova que vos irei propor seja de outra natureza, mais prática.
O que nos interessa isto?, perguntais. E perguntais bem. Não gostaríeis de poder fazer tudo o que a vossa mente pudesse conceber? É possível, nos sonhos, mas é possível. Tudo, desde voar, respirar debaixo de água, transformarmo-nos em animais, o que nos ocorrer! Só os sonhos podem providenciar experiências tão únicas!
E de que adianta fazê-lo, se não é real?, podeis ainda questionar. Acontece que, para a mente, é como se fosse real. Há experiências científicas que comprovam esta ligação. Por isso, quando voardes pelo céu, num sonho lúcido, será como se o estivésseis a fazer na realidade. E voar é só uma das infinitas possibilidades que a percepção da verdadeira natureza dos sonhos nos traz, e cabe-nos a nós aproveitá-la.

Aos mais cépticos resta-me citar Duarte Pacheco Pereira: «como quer que a experiência é madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade», e acrescentar, se duvidais, experimentai por vós mesmos. Sabereis radicalmente a verdade.

Como poderemos experimentar por nós mesmos, se nem sabemos como se causam ou induzem? A Internet tem abundantes recursos nesta matéria – em Português também, e há comunidades dispostas a ajudar os iniciantes no seu caminho para os sonhos lúcidos.

sábado, 17 de abril de 2010

por vezes, excurso pela minha fé

por vezes, excurso pela minha fé

por vezes, excurso pela
minha fé, deus obedece-me
     com dedicação, quando
          alimento os parasitas
       dos meus sonhos para
            sabotar a realidade

          acorro aos pássaros
          desligados ao vento

             não caio, entre os
pássaros bichos irregulares


valter hugo mãe

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Apesar das ruínas e da morte

Apesar das ruínas e da morte

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 13 de abril de 2010

Se não puderes ser um pinheiro

Se não puderes ser um pinheiro

Se não puderes ser um pinheiro no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale, mas sê
O melhor arbusto à margem do regato
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso…
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

(Pablo Neruda)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sobre o ocultismo

Fernando Pessoa explica a Adolfo Casais Monteiro a sua visão sobre o ocultismo, depois de este lha ter perguntado, a respeito da introdução ao poema Eros e Psqiue:
Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
 Fernando Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Eros e Psique

Eros e Psique

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Fernando Pessoa

segunda-feira, 5 de abril de 2010

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma  regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

                      Eugénio de Andrade

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Na terra dos Sonhos

Encontrei esta história que me dei ao trabalho de traduzir:

Na terra dos Sonhos

"O nosso mestre costumava fazer uma sesta todas as tardes", relatou um discípulo de Soyen Shaku. "Nós, crianças, perguntámos-lhe por que o fazia e ele disse-nos: Eu vou à terra dos Sonhos para conhecer os velhos sábios tal como fizera Confúcio." Quando Confúcio dormia, ele sonhava com velhos sábios e depois falava deles aos seus seguidores.
"Certo dia, quando o calor era muito, alguns de nós decidiram dormir uma sesta. O nosso mestre ralhou-nos. Nós fomos à terra dos Sonhos conhecer os velhos sábios tal como fez Confúcio, explicámos. Qual foi a mensagem desses sábios?, quis saber o mestre. Um de nós respondeu: Fomos à terra dos Sonhos e perguntámos-lhes se o nosso mestre vinha aqui todas as tardes, mas eles disseram que nunca o tinham visto."

quarta-feira, 31 de março de 2010

O Andaime

O Andaime
 
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.

A ‘sp’rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha ‘s’prança,
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças —
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

sábado, 27 de março de 2010

Desafio - Onde são as ilhas


Música, levai-me:

Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?
Eugénio de Andrade

Desafio os leitores a responder a Eugénio de Andrade: Onde estão as barcas? Onde são as ilhas?