domingo, 18 de novembro de 2012

Será por bem

O primeiro-ministro do rei era homem de ampla visão e grande equanimidade. Precisamente por isso, o rei tinha grande confiança no seu ministro. Muitas vezes, perante algum acontecimento ou circunstância, o homem dizia: «É por bem». Mas eis que um dia, enquanto usava uma faca, cortou um dos dedos da mão. O ministro, que estava presente naquele momento, declarou sem perder a calma:
- Será por bem.
O monarca ficou fora de si. Como é que cortar um dedo e ficar mutilado para sempre podia ser por bem? Indignado e desiludido, o monarca ordenou que prendessem o ministro. O ministro disse:
- Será por bem.

Dias depois, o reino foi conquistado por outro reino vizinho. O monarca invasor ordenou que os sacerdotes imolassem o rei vencido em honra dos deuses. Iam imolá-lo quando descobriram que lhe faltava um dedo, pelo que tiveram de desistir do ritual (não se oferece  aos deuses um corpo imperfeito). Então, o monarca vencedor disse:
- Nesse caso, sacrifiquem o primeiro-ministro
Mas como o primeiro-ministro estava na prisão, ninguém conseguiu encontrá-lo.

Passadas várias semanas, forças leais ao rei destronado conseguiram recuperar o reino. Então, o rei apercebeu-se de que o seu ministro sempre tivera razão

fonte: Os Melhores Contos Espirituais do Oriente

domingo, 11 de novembro de 2012

E quanto vale a vida?

 

Bem sei que tudo é natural


Bem sei que tudo é natural
Mas ainda tenho coração...

Boa noite e merda!...
(Estala, meu coração!)
(Merda para a humanidade inteira!)

Na casa da mãe do filho que foi atropelado,
Tudo ri, tudo brinca.
E há um grande ruído de buzinas sem conta a lembrar

Receberam a compensação:
Bebé igual a X,
Gozam o X neste momento,
Comem e bebem o bebé morto,
Bravo! São gente!
Bravo! São a humanidade!
Bravo: são todos os pais e todas as mães
Que têm filhos atropeláveis!
Como tudo esquece quando há dinheiro.
Bebé igual a X.

Com isso se forrou a papel uma casa.
Com isso se pagou a última prestação da mobília.
Coitadito do Bebé.
Mas, se não tivesse sido morto por atropelamento, que seria das contas?
Sim, era amado.
Sim, era querido
Mas morreu.
Paciência, morreu!
Que pena, morreu!
Mas deixou o com que pagar contas
E isso é qualquer coisa.
(É claro que foi uma desgraça)
Mas agora pagam-se as contas.
(É claro que aquele pobre corpinho
Ficou triturado)
Mas agora, ao menos, não se deve na mercearia.
(É pena sim, mas há sempre um alívio.)

O bebé morreu, mas o que existe são dez contos.
Isso, dez contos.
Pode fazer-se muito (pobre bebé) com dez contos.
Pagar muitas dívidas (bebezinho querido)
Com dez contos.
Pôr muita coisa em ordem
(Lindo bebé que morreste) com dez contos.

Bem se sabe é triste
(Dez contos)
Uma criancinha nossa atropelada
(Dez contos)
Mas a visão da casa remodelada
(Dez contos)
De um lar reconstituído
(Dez contos)
Faz esquecer muitas coisas (como o choramos!)
Dez contos!
Parece que foi por Deus que os recebeu
(Esses dez contos).
Pobre bebé trucidado!
Dez contos.

Álvaro de Campos

sábado, 10 de novembro de 2012

Solidão


A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios…

Rainer Maria Rilke

Tradução de Maria João Costa Pereira